sábado, 25 de setembro de 2010

Amor


Tivemos um dia perfeito, como se fôssemos protagonistas de um filme, mas sem algodão doce nem feira popular. Sem pôr-do-sol, praia dourada, lua cheia ou jardim encantado. Sem música arrebatadora nem gestos de romantismo. Como cenário, ruas escavacadas, uma casa de banho com o chão enlameado, uma sandes comida a correr ao almoço, o barulho ensurdecedor de um autocarro num túnel.
Mas podíamos ter sido um par perfeito de Hollywood, tivemos intensidade interior para isso, que no cinema teria de ter novas expressões para ser transmitida, mas nós não somos realizadores, não temos de descobrir como tornar bonito por fora aquilo que só é plenitude cá dentro.
Nós só fomos os actores principais, a caminhar lado a lado, sem cenas de beijos nem actos de heroísmo, com os pés sujos e uma piada sussurrada ao ouvido que os microfones não captariam. Só nossa. Como o mundo. Como este dia

domingo, 19 de setembro de 2010

Onde ficam as Escadinhas das Portas do Mar?


Não seguimos em frente, passamos por baixo de um arco que nos leva a uma ruela escura que não sabemos se tem saída e que deve cheirar a mijo, mas não, cheira a caril de um restaurante indiano. Aqui a renda é com certeza mais barata do que na rua principal onde todos os turistas confluem.

Paramos numa padaria para comprar uma garrafa de água e depois sentamo-nos numas escadinhas a observar. Um gato fareja aqui e ali e um homem que passa diz para a menina que brinca na varanda do primeiro andar em frente à padaria que o gato está grávido. Ouvem-se risos. Noutra varanda da casa, esta virada para nós, a mãe da menina fala ao telemóvel e reclama com uma operadora de call centre.

Em frente a nós, dois estudantes vestidos de preto e com pronúncia do Norte insultam o cabrão do homem que recebeu o dinheiro da renda e agora não põe a máquina de lavar roupa. Contornam-nos, sobem as escadas e batem com a porta.

Um homem consegue arranjar espaço naquela ruinha para estacionar uma carrinha enorme entre nós e a padaria, vai fazer contas com a senhora da padaria e depois sai com um saco de plástico daqueles do pão meio cheio de moedas. Vai-se embora.

Passa uma mulher que não tem aspecto de turista com um mapa de um guia turístico na mão, enquanto um homem bem vestido de fato continua a falar ao telemóvel na rua sem se saber onde pertence.

Agora começa a cheirar a pescada e batatas cozidas, mas o caril é mais forte. E ainda cabe mais um carro.

No meio das casas há uma chaminé de tijolo laranja de uma fábrica.

O gato grávido afinal é chamado pela menina filha da mulher que reclama ao telemóvel de Maria. A senhora da padaria limpa o balcão para fechar. Passa uma família de um português, uma espanhola e duas meninas pequeninas cada uma com uma bicicleta e chamam Inês à menina que chamou o gato de Maria.

O gato ronrona a um cão em miniatura que veio à rua passear ou será que é o cão que rosna ao gato grávido?

A mulher acabou a conversa e desliga o telemóvel. A padaria já tem as luzes apagadas.

Há outro cão que espreita na janela em frente à varanda da Inês e recebe festas enquanto a dona estende um tapete.

Dois estrangeiros perguntam-nos como se vai “para riba?” e nós não sabemos, mas um homem que chega com sacos de supermercado logo explica que têm de ir pela estrada. O homem entra no prédio onde vive o cão que recebe festas e volta a sair, dizendo para a mulher do telemóvel “já viste? Meteram mais um carro naquele cantinho. Se há uma emergência estou para ver como é que é!”. Vai-se embora e a mulher manda o marido ligar “agora!” ao Hugo a ver se eles querem almoçar no Domingo. A mulher vem novamente falar ao telemóvel para a varanda, pergunta se preferem uma grelhada mista ou o bacalhau que ali é muito bom e sai mais barato.

Ouve-se o arrulhar de um pombo, começa a ficar mais escuro e há um brisa fresca no ar, mas não cheira mal aqui. Chega até nós o som de talheres a bater nos pratos. Em volta do letreiro do restaurante indiano piscam luzes de Natal.