segunda-feira, 1 de abril de 2013

Bandeira - Santiago (35 km) Via de la Plata

"O nosso olhar só consegue captar uma parte da realidade. Estamos constantemente a selecionar aquilo que queremos ver."

Vestimo-nos e comemos e só depois fomos à casa de banho, já que os sanitários do parque de campismo ficavam afastados do bungalow.
Cerca de meia hora depois de termos começado a caminhar, entrámos em Bandeira e apanhámos o caminho. Neste último dia de peregrinação, seguimos sempre pelo caminho original, sempre fieis às setas amarelas. Uns kms mais à frente, encontrámos as duas espanholas amigas da Irene (sentimos falta do despertador dela nesta alvorada), tinham pernoitado em Bandeira numa acomodação privada arranjada quando chegaram.

A lama, a chuva e a maravilha dos campos verdejantes já nos acompanhavam há tantos dias, mas não deixavam de nos trazer o gosto fresco da novidade. Apesar do peso do caminho, ainda conseguíamos admirar a beleza de uma igreja e inquietarmo-nos com um charco de lama. sentimo-nos vivos por termos esta capacidade de alimentar a nossa criança interior!

E nós também nos fomos alimentando com o lanche que levávamos pois ao fim de umas horas de caminho a fome já dava sinais. As companheiras espanholas aproveitaram uma aberta e pararam para descansar e comer, nós fomos sempre seguindo, fazendo um esforço para manter o grupo unido. Éramos só seis nessa altura.
Em Ponte Ulla, descemos abruptamente e os nossos joelhos e pernas queixaram-se muito. Mais à frente reencontrámos os nossos companheiros, avistando o carro estacionado na ponte. Fizemos a primeira paragem do dia para tomar algo quente e descansar um pouco. Já caminhávamos há 3h e ainda não tínhamos chegado ao Outeiro.

A partir daqui, a Xana e a Andreia T. voltaram a integrar o grupo de caminhantes. O grupo ia animado, a subir pela berma duma estrada, quando se ouviu uma criança a chorar desesperadamente. Parámos para nos certificar que não era um cão, mas era mesmo uma criança e o som vinha do meio do silvado ali ao lado. Lancámo-nos pelos arbustos e descobrimos um menino com cerca de 2 anos caído de uma bicicleta. espantado por nos ver calou-se e algum tempo depois apareceu a mãe. Estava furiosa e garantiu-nos que tudo não passou de uma birra do menino que não queria seguir e ela para o ameaçar continuou a andar sem ele. Ainda bem que tudo não passou de um susto. Não admira que as conversas seguintes tivessem girado à voltas das sensíveis questões da educação.

Sempre a subir, chegámos finalmente ao Outeiro e ali os nossos expeditos companheiros esperavam-nos com comida para o almoço, além do habitual rodízio de tortilhas, pão e frutas, tínhamos ainda frango e empadas que sobraram da noite anterior!

Passámos o albergue de Outeiro e embrenhámo-nos em mais um bosque. Tínhamos ainda 18km pela frente. 18 sofridos kms... Nesta fase já nos era mais fácil uma subida do que uma descida. O que valia era a alegria e a boa disposição que nos iam distraindo das dores. Por esta altura, contavam-se anedotas! O problema é que o riso me lembrava da vontade de fazer xixi e não tive outro remédio se não improvisar uma casa de banho atrás dos arbustos.

Num cruzamento, encontrámos uma cadeira muito alta, impossível de dar descanso. Era um monumento aos peregrinos que tinham tantas oportunidades de descansar pelo caminho e mesmo assim teimavam em caminhar!
Em Susana, o grupo aprimorou-se com a presença do Jorge que quis fazer os últimos kms a pé connosco. Subidas e descidas. Risos e queixas. Camélias e chuva. Perguntávamos a cada transeunte quantos kms faltavam e espreitavámos do alto de cada subida na esperança de ver ao fundo os "pináculos retumbantes" da catedral, mas nada... o desespero surgiu quando pensávamos que estávamos a menos de 2 km do nosso destino e encontrámos uma indicação que nos garantia que tínhamos quase 6 km pela frente até ao nosso destino.
Eu e a Andreia esmorecemos e começámos a sentir com muita força cada uma das dores que nos assolavam: pés, joelhos e pernas latejavam em sofrimento. Decidimos parar a descansar num coreto, estendemos as pernas e comemos alguma coisa. Quando recomeçámos, já nos sentíamos melhor. e ficámos ainda mais animadas quando o Jorge se disponibilizou para nos levar de carro a Allariz, onde tínhamos deixado o nosso carro.
Quando finalmente avistámos a catedral, enchemo-nos de alegria. Tantas lutas, tanta descoberta, tanta profundidade, tudo o que cabia dentro daqueles 5 dias valera tanto a pena!
Descemos a coxear, mas esquecidos dos sofrimentos e dirigimo-nos para o seminário menor de Santiago que servia de albergue de peregrinos. Eu, o Vitor e a Andreia não fizemos o check-in pois ainda iríamos voltar nessa noite. Esperámos pelo grupo que se atrasara, mas viemos a saber que já estavam à nossa espera na catedral. A entrada foi emotiva e a missa foi muito sentida: a celebração da vida! No fim, assistimos a uma procissão de Via Crucis e tentámos abraçar o Santo, mas sem sucesso.

Já cá fora, do Largo do Obradoiro, todos reunidos, tirámos a tradicional foto de grupo!

Depois fomos jantar num restaurante, a comida não nos convenceu, mas a amizade prevaleceu.
A cada uma das pessoas que fizeram este caminho comigo, o meu profundo agradecimento!
A todos os outros, encontramo-nos por aí pois, para quem vive em peregrinação, esta foi só mais uma etapa de um longo caminho!
Que sejamos felizes!

Nota: Fotos de Pedro Costa

Castro Donzon - Bandeira (35 km) Via de la Plata

" Não precisamos de continuar a caminhar, há muitas formas de ser forte e não há nenhum problema em desistir. O nosso caminho é a nossa verdade e ela é o melhor presente que temos para oferecer."


No dia 26 de Março, o Gui fazia anos e como de costume começámos o dia bem cedo: às 7h da manhã já estávamos todos reunidos a cantar os parabéns e a partilhar uma tarte de Santiago que chegou para todo o grupo e ainda para alguns companheiros do albergue como a alemã Anna e as 3 espanholas que tinham a música dos Beirut no despertador.

Arrancámos logo depois e decidimos seguir até Lalin pela estrada nacional, uma vez que os caminhos se adivinhavam maus como no dia anterior. Quem quis, pôde deixar a mochila no carro de apoio. Mal começámos a caminhar, encontrámos a Anna que nos fez companhia até Lalin. Também a dona do despertador nos apanhou algum tempo depois, chamava-se Irene e decidiu avançar uma etapa, ao contrário das duas companheiras que vinham num ritmo mais lento mais atrás.


Em Lalin, apesar de a cidade ser relativamente grande, foi uma maratona atrás de um café. Finalmente encontrado, reunimos o  grande grupo, já com os colegas que tinham chegado de carro e convivemos um pouco naquele ambiente quentinho.

Depois tivemos de nos fazer novamente ao caminho, à estrada no caso, e alguns quilómetros depois estávamos em Laxe. Ali decidimos voltar ao caminho e separámo-nos das nossas companheiras Anna e Irene que continuaram pela estrada pois ainda queriam chegar nesse dia a Outeiro, um propósito muito ambicioso.

Nós voltámos a molhar os pés na lama e nos charcos, mas todos os esforços foram compensados com as surpresas que o caminho nos reservava e o silêncio que nos proporcionava. Um momento alto foi a travessia, sempre debaixo de chuva, de uma ponte milenar. Depois de mais vacarias, água e caminhos de lama, acreditámos que já tínhamos passado Silleda, o local onde os nossos companheiros de carro nos esperavam. Parecia-nos que já tínhamos andado muito, mas a verdade é que só mais à frente é que estavam os nossos amigos. Ali, soubemos que só havia um albergue privado em Silleda e o grupo teria de se dividir. Decidimos caminhar mais 5 ou 6 km até Bandeira. Os que estavam de carro ficaram em Silleda e os peregrinos pernoitariam no parque de campismo de Medelo, em Bandeira. Antes de nos fazermos novamente ao caminho, aproveitámos o almoço volante que os nossos queridos colegas nos tinham comprado. Chocolate, pão, chouriços, fruta, tortilha e sumos fizeram as nossas delícias.


O cansaço já era muito e aqueles minutos em que estivemos parados arrefeceram-nos, o arranque foi por isso doloroso, mas o caminho era para a frente.

Mais estrada, mais dores, mais risos e mais chuva, apesar de fraca nessa tarde. depois de termos percorrido já alguns kms, vimos uma indicação para o parque de campismo onde ficava o albergue. Como sabíamos que teríamos de fazer um desvio de 3 kms, seguimos essa indicação, mais à frente, com a ajuda de um taxista, soubemos que aquele era o caminho mais longo e por isso, para nosso desespero, tivemos de voltar para trás. Mais Kms, mais estrada, mais barulho e chuva. Junto ao acesso para uma autoestrada, decidimos parar num café para ir à casa de banho e beber algo quente. Atravessar a estrada mostrou-se depois um desafio perigoso, mas com calma tudo se conseguiu.
Os nossos colegas ligaram-nos entretanto  a avisar que o parque estava fechado e que nos levariam de carro de volta para Silleda. Ficámos tristes e confusos, pois já tínhamos telefonado e nos tinham garantido que havia lugares ali. Voltámos a ligar e voltaram a confirmar, pelo que decidimos seguir.
E foi duplamente escoltados que percorremos os 3 dolorosos kms que nos levariam ao parque de campismo. à nossa frente seguia um amável senhor que nos indicava o caminho de carro pelo meio de campos a perder de verde. Não havia dúvida que a paisagem era inspiradora. Atrás de nós, seguiam os nosso amigos que queriam saber se chegávamos bem.
Moral da história: só fomos a pé porque quisemos!
O bungalow onde ficámos no camping era acolhedor, mas pequeno, por isso o grupo ficou mesmo separado nessa noite. Mas fomos tão mimados pelos nosso companheiros que ns deixaram muita comida e ainda foram comprar frango assado e empanadilha galega que esquecemos o resto.
Tudo o que queríamos era dormir e o Gui não perdeu tempo, caiu na cama assim que chegou e nem se apercebeu da comida que chegou e muito menos do champanhe que tinham comprado para festejar o seu aniversário.
É que aquele longo dia que tinha começado num albergue há 35 kms atrás ainda não tinha terminado! Mas ele tinha morrido para o mundo.
Os outros ainda se aventuraram a descer uma ladeira à frente do bungalow até aos chuveiros, jantaram e pouco tempo depois estavam a dormir.
Como ninguém sabia quando o Gui iria acordar, dormimos de luz acesa. E às 4h da manhã acordámos com um barulho estonteante, é que a linha do comboio passava ali mesmo ao lado!

Nota: Fotos de Pedro Costa