terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pureza




A água era o seu maior fascínio, passava horas a brincar com os pés num rego, a alterar o seu percurso, a fazer experiências com as pedras e a encantar-se com a forma como a água arranjava sempre uma forma de contornar os obstáculos.

Às vezes também brincava com as primas mais velhas, mas elas só gostavam de bonecas e de conjuntos de chá e de café de brincar que nunca sujavam e onde ela não podia colocar o excelente café de terra que fazia porque os brinquedos das primas nunca iam para a rua.


Era por isso que ela se juntava mais com o cenourinha, um rapazinho apelidado pelos outros de “atrasado”, nome que ela nunca compreendeu bem porque ele era sempre o primeiro a aparecer na rua de manhã com os beiços ainda sujos de chocolate e com um sorriso rasgado quando a mãe o levava para brincar com os outros meninos que à medida que iam aparecendo faziam grupos,equipas, planeavam jogos sem nunca o incluírem. Sabia que também não era por ele chegar atrasado à escola, mas que era por causa da escola que ele tinha aquela fama. Embora fossem da mesma idade, ele não passava do primeiro ano. Gostava dele porque tinha a doçura das meninas, mas mais paciência do que elas.

Quando passava o autocarro na rua deles, costumavam parar de brincar para verem o que as pessoas traziam da cidade: instrumentos musicais de plástico, sacos de fruta, árvores para replantar, roupas novas, doces, chapéus da moda... Às vezes, ofereciam-se para ajudarem alguma tia ou vizinha a carregarem os sacos, mas desta vez não conheciam ninguém e mantiveram-se encostados a um cano de água a tentar compreender a voz de trovão que lhes falava lá de dentro. E a menina viu então junto à hera do muro um frasquinho pequeno com água lá dentro. Desta vez, achou mais graça ao frasco em forma de rosa do que ao líquido e apanhou-o fascinada. O cenourinha olhava-a com olhos grandes e lábio inferior relaxado. Nunca tinham visto uma garrafa tão bonita e decidiram deitar fora a água para ver como ficaria cheia de líquidos de outra cor. Deram então conta que não era água, mas sim um perfume e arrependeram-se de o ter desperdiçado, mas nessa altura já os seus sapatos e meias estavam salpicados e o frasco não tinha nem mais uma gota e eles divertiram-se a fazer misturas de água com pétalas, batido de folhas e cal que saía do muro.

Nesse dia acabou o Verão e os sapatos foram arrumados. Muitas voltas o mundo deu até que, num dia de Outono, a menina já mulher levou a sua filha à escola das crianças agora chamadas “especiais”, ela continuava sem entender a expressão porque achava que só por serem crianças todas eram especiais. A menina levava nos pés os sapatos que a mãe da mulher arrumara há tanto tempo atrás. Quando chegaram foram conhecer os ateliers criativos e a mãe da menina viu numa prateleira da sala de trabalhos manuais um frasco em forma de rosa com areia colorida lá dentro que reconheceu e lembrou-se do perfume que ainda estava nos sapatos da menina e a transportava para momentos felizes. Olhou melhor para o formador, era o cenourinha. Foi falar com ele e contou-lhe tanta coisa, descrevendo com todos os pormenores a gravidez da filha e a origem da deficiência dela. Ele não percebeu nada, mas mostrou-lhe um sorriso tão doce e puro que lhe pareceu água e ela sentiu-se em casa. E começou a entender porque é que a sua filha era especial.


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Maternidade




Tão improvável como ter nascido neste sítio foi ter chegadocá agora mais de 30 anos depois. A caminhar ao acaso pela cidade: avirar à direita ou à esquerda ao calhas conforme o lado da rua onde bate o sol,arrepiozinho de prazer; a parar para ver um pormenor da rua que fotografo: aolado da tabuleta oficial “Rua da Torrinha”, outra indicação pintada na paredeelucida “Rua Júlia Nogueira, ínsígne mestre das sirigaitas”; a desviar-me de umabelhão que plana à altura do meu nariz; mais à frente vejo do lado direito darua um palácio imponente que parece ter sido transformado numa discoteca eimpressiono-me com o facto de os vidros frágeis e velhos estarem todosintactos… e depois “Maternidade Júlio Dinis”. Mas foi aqui que eu nasci!! E averdade é que nunca mais cá tinha voltado. Quis entrar, o sítio onde nascemosafinal será sempre a nossa casa.

Apesar de a minha mãe me ter registado como natural dafreguesia onde sempre vivi, eu sou daqui porque foi este mundo que abriu umacratera para me acolher e me deixou ganhar fôlego e gritar. Obrigada pedras,lago e buganvílias secas, mesmo que já não sejam os mesmos!

Onde será que estacionou a ambulância que atravessou ascurvas da montanha com a minha mãe a contorcer-se de dores? Quem terá visto omeu rosto pela primeira vez? E o que terá sentido o meu pai quando entrou aquihoras depois depois de uma viagem atribulada de camioneta com os nervos aquererem sair pela boca?

Não sei se são as vidas, as pedras ou o medo reciclados queme sussurram agora numa frescura matinal: “a viagem foi longa, mas chegaste aosítio certo, está tudo pronto, podes nascer”.