O parque estava cheio de miúdos, talvez por ser
dia de feira ou então foi por terem começado as férias escolares. Um pai
ajudava uma criança muito pequena a subir para o escorrega. Às voltas pelo
recinto, atrás de um miúdo reguila, uma mulher muito nova exibia uma barriga
que já não lhe cabia naquela camisola que não fora concebida para grávidas.
Era a primeira vez que eu estava naquela cidade
retilínea, desenhada a régua a esquadro, onde as ruas não tinham nome, mas sim
uma ordem numérica.
Do lado de fora do parque, alguns pais ou avós
esperavam as crianças, vigiando-as distraidamente.
E foi então que se aproximou a menina, rodeada de
polémica. Da mão pequenina caía uma coleira. Ao verem-na aproximar-se, as crianças
que brincavam lá dentro começaram a correr para ela, gritando "um
coelho". Uma avó que até então se mantivera num plano ausente da cena
ganhou forma e feitio de senhora refinada. A echarpe clara aos ombros dava-lhe
solenidade ao nariz empinado e a mulher começou a dar ordens para dentro:
- Nem penses, Catarina, não te aproximas no
animal. Não, não, não! Volta lá para dentro. Ouviste? Não, nada disso!
A excitação das crianças crescia na mesma medida
que a indignação dos adultos aumentava.
- Ela vai matar o bicho -advertiam eles. - A
arrastar assim o animal com a corda presa ao pescoço...
A menina não aparentava ter mais de quatro anos,
mas avançava sozinha. Os adultos entreolhavam-se entre si para tentarem
perceber quem seria o acompanhante daquela criança, mas os poucos suspeitos que
eram apontados por raios de desconfiança que cresciam dos olhares vizinhos
rapidamente apresentavam provas da sua inocência aproximando-se ou falando com
a sua criança.
A menina vinha mesmo sozinha.
A sua pele era muito escura, contrastando com o
cabelo loiro muito embaraçado e cheio de nós. O que escurecia a pele era muita
sujidade e exposição ao sol, pois claramente aquela menina teria uma ela
branquinha se fosse filha ou neta das senhoras que agora lhe gritavam.
O dia era de sol, mas a menina suja empregava
umas botas de lã que lhe ficavam grandes e ela tinha de arrastar ao andar. O vestido
fino que a cobria cheirava a suor e lágrimas e as suas alças caíam-lhe pelos
ombros, obrigando-a a dar esticões no pescoço do coelho para, em movimentos
rápidos, compor o vestido.
Pelo meio da confusão geral, ela entrou no parque
e dirigiu-se a mim, oferecendo-me o coelho. Eu fiz cara de parva, atarantada
pelas frases revoltadas das outras mães que diziam que a culpa não era dela,
mas de quem a deixava fazer aquilo, e não aceitei.
A menina nunca falou e ninguém soube de que
nacionalidade ela era, nem como se chamava, nem onde tinha arranjado o seu
animal de estimação e muito menos quem eram os seus pais.
Algumas crianças mais velhas e mais militantes da
causa dos animais tentavam salvar o bicho, dissuadindo a menina de o puxar pelo
pescoço. Ela perdeu força e a dada altura já eram os outros que carregavam o
coelhinho, sentenciando que ele iria morrer em breve, enquanto os pais e avós
exigiam que colocassem aquele animal imundo no chão.
No meio de um grande rebuliço, a menina e o
coelho foram levados pelo grupo para junto de uma carrinha de feirantes
estacionada do outro lado da praça. O que aconteceu ali não se vislumbrou do
parque. A menina não se voltou a ver, mas os seus gritos ainda soam bem alto no
parque infantil, disformando a alegria que os baloiços prometem. A fazer coro,
apareceram algumas crianças mais velhas a chorar que o coelho tinha mesmo
morrido.
É que isto não se faz a um animal.
Eu fico com cara de parva... uma parva maravilhada sempre que te leio :)
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