sexta-feira, 20 de julho de 2012

O parque estava cheio de miúdos

O parque estava cheio de miúdos, talvez por ser dia de feira ou então foi por terem começado as férias escolares. Um pai ajudava uma criança muito pequena a subir para o escorrega. Às voltas pelo recinto, atrás de um miúdo reguila, uma mulher muito nova exibia uma barriga que já não lhe cabia naquela camisola que não fora concebida para grávidas.

Era a primeira vez que eu estava naquela cidade retilínea, desenhada a régua a esquadro, onde as ruas não tinham nome, mas sim uma ordem numérica.

Do lado de fora do parque, alguns pais ou avós esperavam as crianças, vigiando-as distraidamente.

E foi então que se aproximou a menina, rodeada de polémica. Da mão pequenina caía uma coleira. Ao verem-na aproximar-se, as crianças que brincavam lá dentro começaram a correr para ela, gritando "um coelho". Uma avó que até então se mantivera num plano ausente da cena ganhou forma e feitio de senhora refinada. A echarpe clara aos ombros dava-lhe solenidade ao nariz empinado e a mulher começou a dar ordens para dentro:

- Nem penses, Catarina, não te aproximas no animal. Não, não, não! Volta lá para dentro. Ouviste? Não, nada disso!

A excitação das crianças crescia na mesma medida que a indignação dos adultos aumentava.

- Ela vai matar o bicho -advertiam eles. - A arrastar assim o animal com a corda presa ao pescoço...

A menina não aparentava ter mais de quatro anos, mas avançava sozinha. Os adultos entreolhavam-se entre si para tentarem perceber quem seria o acompanhante daquela criança, mas os poucos suspeitos que eram apontados por raios de desconfiança que cresciam dos olhares vizinhos rapidamente apresentavam provas da sua inocência aproximando-se ou falando com a sua criança.

A menina vinha mesmo sozinha.

A sua pele era muito escura, contrastando com o cabelo loiro muito embaraçado e cheio de nós. O que escurecia a pele era muita sujidade e exposição ao sol, pois claramente aquela menina teria uma ela branquinha se fosse filha ou neta das senhoras que agora lhe gritavam.

O dia era de sol, mas a menina suja empregava umas botas de lã que lhe ficavam grandes e ela tinha de arrastar ao andar. O vestido fino que a cobria cheirava a suor e lágrimas e as suas alças caíam-lhe pelos ombros, obrigando-a a dar esticões no pescoço do coelho para, em movimentos rápidos, compor o vestido.

Pelo meio da confusão geral, ela entrou no parque e dirigiu-se a mim, oferecendo-me o coelho. Eu fiz cara de parva, atarantada pelas frases revoltadas das outras mães que diziam que a culpa não era dela, mas de quem a deixava fazer aquilo, e não aceitei.

A menina nunca falou e ninguém soube de que nacionalidade ela era, nem como se chamava, nem onde tinha arranjado o seu animal de estimação e muito menos quem eram os seus pais.

Algumas crianças mais velhas e mais militantes da causa dos animais tentavam salvar o bicho, dissuadindo a menina de o puxar pelo pescoço. Ela perdeu força e a dada altura já eram os outros que carregavam o coelhinho, sentenciando que ele iria morrer em breve, enquanto os pais e avós exigiam que colocassem aquele animal imundo no chão.

No meio de um grande rebuliço, a menina e o coelho foram levados pelo grupo para junto de uma carrinha de feirantes estacionada do outro lado da praça. O que aconteceu ali não se vislumbrou do parque. A menina não se voltou a ver, mas os seus gritos ainda soam bem alto no parque infantil, disformando a alegria que os baloiços prometem. A fazer coro, apareceram algumas crianças mais velhas a chorar que o coelho tinha mesmo morrido.

É que isto não se faz a um animal.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Lavagem

Estes primeiros raios de sol vêm perfumar a cidade limpa pelas chuvas de um mês inteiro.
A cidade é percorrida, hoje como ontem, por uma varina que tem escamas de peixe na cara e as chinelas impregnadas de tripas de pescado. Mas hoje ela cheira melhor. Porque é penetrada por uma luz que ignora os podres e foca a beleza, a tradição e a ordem.
Numa rua desta cidade, eu vi uma placa com letras gravadas em baixo relevo, daquelas que enumeram os moradores de uma casa e se colam nas caixas de correio, que dizia: "se trouxer alguma coisa para Amélia Costa da casa 6, por favor toque à campainha". E esse objeto, lido à luz do sol, perdeu o bizarro e o ridículo e deu à cidade a graça das crianças, ou dos velhos, que são tão parecidos.
Esta cidade tem uma igreja onde eu nunca entrei e, quando hoje o tencionava fazer, fechou-me as portas, eu teria que adquirir bilhete para entrar. Preferi sentar-me aqui, à soleira, a aquecer ao sol. Este sol que me lava e me anuncia novas cidades dentro desta.

domingo, 29 de janeiro de 2012

História de amor

Se eu soubesse pintar, não sei que branco encontraria para revelar a luz que esconde este mar, sufocado debaixo de tanta crepitação. O branco enevoa também este momento que perdeu contornos, guardando só uma essência de luz laranja que não nos deixa nunca esquecer o que vivemos a seguir. Este mar é um reservatório profundo de calmaria, embora eu não o veja, porque tu estás ao meu lado. Se eu pudesse algum dia contar a alguém de que cor é o teu cabelo, talvez dissesse palavras de música, simples e profundas como os teus olhos. De que cor são os teus olhos? Posso beijá-los? Posso beijar-te?
Estamos aqui os dois, só nós dois, em frente a esta praia inteira de Abril, virgem ainda de gente. Estamos no carro, mas lá baixo há gaivotas, praia, cães e surfistas e há aquele branco, muito branco a arder no mar. Hoje não estão aqui os amigos do costume porque nós já aprendemos a ficar em silêncio sozinhos. Talvez um dia eu aprenda a dizer uma palavra que tu compreendas e tu me beijes de seguida. Talvez se eu aprender a dizer a cor do teu cabelo… Como se explica o branco? Gosto de estar aqui em silêncio contigo, mas também gostava muito de dizer alguma coisa que nos deixasse agora muito juntinhos.
Lembras-te do dia em que nos conhecemos?  Estávamos sentados no autocarro, lá fora chovia muito e nós, talvez envolvidos pelo conforto de sabermos que uns centímetros de vidro nos mantinham a seco, estávamos soltos, olhámos um para um outro e sorrimos, depois conversámos e depois… inventámos sempre novos depois. Talvez não saibas, mas eu sentei-me ao pé de ti porque quando te vi fiquei como que ofuscado, como se te vestisses com um espelho que irradiava luz directamente para mim para me cegar... E tu agora aqui, assim à minha frente, em silêncio… gostava de te beijar! Naquele dia, há alguns meses atrás, os nossos joelhos tocaram-se e nós sabíamos que não era casual, mas não podíamos assumir ainda que a nossa vontade eram cavalos desvairados a saltar vedações pelos campos fora, sempre à procura de novos horizontes. Mesmo agora, neste momento tão nosso, estamos aqui a domar animais ferozes e acalmá-los com vozes suaves.
Sinto-me embalado pelo mar e pelo teu cheiro que dá alma a este carro. A primeira vez que foste a minha casa parecias uma cliente e eu um vendedor imobiliário, tal era a nossa rigidez e acanhamento. Éramos quase vizinhos, mas nunca nos tínhamos cruzado nem frequentado as mesmas escolas. Quando andava na escola, desejava com todas as minhas forças ser igual aos outros e ter montes de miúdas atrás de mim. Agora sei que o passado perde valor perante este momento em que estás aqui comigo, é como se sempre te tivesse tido ou como se sempre te tivesse esperado. Juro que é hoje que te beijo, é o tudo ou nada! Tanto tempo à espera deste momento, a aprender a estar contigo sem dizermos nada, mas hoje preciso de mais, quero um beijo. Será que to devia pedir ou fico só aqui assim, sem fazer nada? Parece-me que o mar já não é tão branco… a praia ainda está lá, mas nós nunca a vimos, porque estamos os dois aqui no carro.
Nesse dia, a minha mãe estava a ser simpática e eu a queixar-me dela assim que saiu e tu a lamberes a ferida de não teres uma mãe. Desculpa não ter visto a tua dor, estava muito ocupado com o meu embaraço e disse coisas só por dizer para cobrir com terra o mais rápido que pudesse aquele buraco fundo que era estar contigo sozinho em casa e querer fazer amor contigo. Não sei em que altura é que te vi chorar pela primeira vez, talvez tenha sido na festa de anos do meu priminho Joel, não sei bem, mas sei que nessa altura te compreendi profundamente e senti o  poço de morte em que se tornara o teu peito, onde tu conduzias como louca para fugir àquela negridão de não ter mãe.
Tive medo de não saber falar contigo, de não perceberes que eu te conseguia compreender, mesmo passando a vida a dizer coisas pela boca fora sobre a minha mãe. Agora já percebi há muito tempo que não preciso de falar, sei que nos encontrámos um momento antes das palavras se designarem umas às outras. Mas será que nos entenderemos mesmo quando nos beijarmos? É incrível como tu consegues falar sem parar sem te tornares chata e depois podes ficar assim, como agora, a encher o espaço com a tua presença, sem qualquer palavra. Que mais coisas tens para me contar? Já sei que entraste para a universidade no mesmo ano que eu, que frequentamos o mesmo supermercado, mas tu fazes as compras para ti e para a família todos os Sábados de manhã e eu vou só de vez em quando fazer recados à minha mãe. Sei tanta coisa sobre ti que nunca mais acabaria de pensar em tudo… só não sei a que sabem os teus lábios…
E o beijo aconteceu! O beijo! Tu e eu! E a praia a dormir lá em baixo e o mar que não sei que cor tem, nem sei se é dia ou noite nem nada, nada… porque nos beijámos! E o abraço chegou também!
E foi então que tu disseste a palavra que se eu pudesse traduzir seria “futuro”! Na verdade, tu só me beijaste de novo, acho que não disseste nada, porque nos abraçámos e beijámos muito. E eu comecei então a fazer-te promessas, havemos de acabar o curso e benzer as pastas juntos, havemos de comprar roupa de gala e ir juntos a uma ópera no S. Carlos, havemos de ter um carro nosso e viajar tanto que nem precisaremos de uma casa. Queres ser minha namorada?
Um dia havemos de descer juntos as escadas do nosso bairro a correr, vestidos de noivos e vamos ter o casamento mais maluco que os nossos amigos alguma vez viram. Quem me dera que esse dia fosse hoje… mas este dia já é muito grande, nem sei se este dia é ainda o mesmo dia, este dia em que te beijei, em que nos beijámos. Hoje foi uma vitória tão grande, parece quase que conseguiria explicar a toda a gente como me sinto quando te vejo e contemplo a tua cor de cabelo! Parece que a tua beleza  é concreta e fácil de explicar.
Gostava que a tua vida fosse mais fácil, embora tu não te queixes, é certo, mas não deve ser fácil teres de aturar as loucuras do teu irmão e a indiferença do teu pai. Vou confessar-te, não me sinto nada confortável quando estou com eles: o teu irmão a ouvir a música nas alturas e o teu pai a fazer de conta que não ouve. Ele será surdo? E tu a seres mãe deles quando tudo o que precisavas era de um colo para ti. Não posso nem te quero prometer que te dou o amor que a tua mãe te daria, mas se o amor é todo o mesmo, então podes crer que o que te vou dar é um perfume muito bom da tua mãe.
Para já, vou mandar uma mensagem a todos os nossos amigos e convidá-los a irem ter comigo amanhã ao café, vão ter cá uma surpresa quando nos virem de mãos dadas.  Bem, eles até já nos viram de mãos dadas, ainda há pouco tempo quando fomos ao concerto da Katie Melua íamos bem agarradinhos, com a desculpa que era para não nos perdermos no meio da multidão. Mas eles perceberão logo que já não somos só amigos inseparáveis, hão-de reparar na forma natural como nos tocamos e, se não perceberem, também não vou demorar muito tempo até lhes contar. Saberão que este beijo é real. Mas não poderão saber tudo o que eu sei porque este beijo me conta.
E este beijo não sabe ainda que teremos um dia de chorar, não compreende que teremos um dia que discutir, não percebe que teremos de nos esquecer deste momento e recomeçar de novo. Este beijo não pode imaginar que haverá outros primeiros beijos. Será que saberemos esperar por eles como esperámos por este?

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Às vezes, basta uma música para nos fazer percorrer em instantes a história da nossa vida, encontrando pontos que se tocam e se cruzam, como aqueles fios finos, tão finos, que constituem os nossos tecidos e que não se vêem, mas são bases.
Às vezes, quando conseguimos ver assim a nossa vida de relance, percebemos que há um foco de luz lá no meio que anula o mal que também existe e nos faz peceber que somos maiores porque ainda conseguimos escutar com lágrimas nos olhos uma música.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

novo

Hoje capto no ar um cheiro muito concreto a livros ainda por folhear e lápis e borrachas prontos a criar.
Apetece-me tanto estrear a vida!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Arrepio

O cheiro de um crime é horrível, mesmo que tenha acontecido há 20 anos, ainda que nessa altura nem tivéssemos nascido ainda.
A Tatyana não só não tinha ainda vindo a este mundo, como ainda por cima é de bem longe, mas tem os olhos embaciados de espanto e a pele inquieta de tremor.
Descobriu que a barraca que ela e a família reconstruíram debaxo da linha do comboio e que tinha sido em tempos -já depois de ter abrigado o assassinato- destruída por máquinas retroescavadoras foi palco de um episódio atroz.
E soube disso pela televisão, mas aquele odor a sangue agora persegue-a e dá-lhe náuseas. Ela sabe que o mal existe e é concreto, tão real como o barulho do comboio que passa de 5 em 5 minutos e abafa os gritos que aquela mulher estrangulada deve ter vomitado.

domingo, 13 de novembro de 2011

Os olhos da Tatyana


Neste país as pessoas parecem mais altas do que na Roménia, mas é por as ver de baixo para cima que acho isso. Sento-me no passeio, encostada a um parquímetro, em cima de um cartão que não evita que sinta o frio e a humidade do chão. Seguro uma garrafa de plástico cortada com 2 moedas dentro que vou abanando para lembrar quem passa de me dar uma esmola, como quem agita uma roca para atrair a atenção de um bebé. Hoje não trouxe o meu rico menino, está muito constipado, ficou com a minha prima. De vez em quando dou uma espreitadela para os lados da barraca, embora não a veja daqui, mas se não vem lá ninguém a descer a encosta é porque deve estar tudo bem.

Se estivesse a chover ia ali para debaixo da linha do comboio, saem de lá magotes de gente que passam por mim e não me vêem, ou se vêem não ouvem porque levam coisas a tapar os ouvidos. No entanto, não precisam de ouvir o que digo ou ler a mensagem escrita num papelão, percebem perfeitamente o que estou a fazer e passam ao lado. De vez em quando alguém se aproxima e deixa uma moeda, mas nem olha para mim. Não me importo. Às vezes penso como seria se também eu apanhasse o comboio e andasse na rua distraída sem ter de me preocupar com o que comer. Nesse dia daria esmola a todos os pedintes que encontrasse e talvez também um sorriso, depende da confiança que me inspirassem, mas se fossem mães com crianças ia querer brincar um bocadinho com o menino ou pelo menos saber o nome e a idade da criança e iria reparar que estava constipada. Mas não sei andar de pé, não sei fazer nada, não posso deixar os meninos, nem sei que caminhos escolheria e que comboio apanharia.

Se estiver bom tempo, prefiro ficar na rua, não há seguranças a chatear-me e há mais distracções, além de não ficar tão escondida pelas multidões. Aqui há muitos prédios, alguns bem impressionantes, por mais que tente puxar pela cabeça não consigo ter ideia do que toda esta gente faz lá dentro. Sei que vão sempre com muita pressa e que é com o que ganham lá que se vestem bem e comem tudo o que querem, mas o que fazem não faço ideia. Compreendo o trabalho do restaurante e das cafetarias aqui da rua e também sei o que tem de fazer o chinês da loja de roupa, mas nos andares superiores não consigo imaginar. Habituei-me a ver estas pessoas e estas ruas e estas lojas como paisagem, fazem parte de outra realidade à qual eu não pertenço e por isso acabo por não as ver, nem aos seus carros, nem aos sacos e bolsas que carregam. Vejo, isso sim, os polícias, os varredores de rua, os carteiros e os taxistas, que me insultam, desprezam e expulsam da rua.

Ganhei 5,15€ hoje, vou à loja do chinês comprar massa para o jantar, passo no supermercado e compro vinho para o marido e com o que me restar hei-de ir à farmácia comprar alguma coisa para a tosse do menino. Depois atravesso a linha, subo a encosta da estrada, contorno a “horta” do Ti Manel a quem comprarei cenouras e chegarei à nossa barraca. Espero que o Ronan esteja melhor. Hei-me abraçá-lo e dar-lhe mama.