A água era o seu maior fascínio, passava horas a
brincar com os pés num rego, a alterar o seu percurso, a fazer experiências com
as pedras e a encantar-se com a forma como a água arranjava sempre uma forma de
contornar os obstáculos.
Às vezes também brincava com as primas mais velhas, mas elas só gostavam de
bonecas e de conjuntos de chá e de café de brincar que nunca sujavam e onde ela
não podia colocar o excelente café de terra que fazia porque os brinquedos das
primas nunca iam para a rua.
Era por isso que ela se juntava mais com o cenourinha, um rapazinho
apelidado pelos outros de “atrasado”, nome que ela nunca compreendeu bem porque
ele era sempre o primeiro a aparecer na rua de manhã com os beiços ainda sujos
de chocolate e com um sorriso rasgado quando a mãe o levava para brincar com os
outros meninos que à medida que iam aparecendo faziam grupos,equipas, planeavam
jogos sem nunca o incluírem. Sabia que também não era por ele chegar atrasado à
escola, mas que era por causa da escola que ele tinha aquela fama. Embora
fossem da mesma idade, ele não passava do primeiro ano. Gostava dele porque
tinha a doçura das meninas, mas mais paciência do que elas.
Quando passava o autocarro na rua deles, costumavam parar de brincar para
verem o que as pessoas traziam da cidade: instrumentos musicais de plástico,
sacos de fruta, árvores para replantar, roupas novas, doces, chapéus da moda...
Às vezes, ofereciam-se para ajudarem alguma tia ou vizinha a carregarem os
sacos, mas desta vez não conheciam ninguém e mantiveram-se encostados a um cano
de água a tentar compreender a voz de trovão que lhes falava lá de dentro. E a
menina viu então junto à hera do muro um frasquinho pequeno com água lá dentro.
Desta vez, achou mais graça ao frasco em forma de rosa do que ao líquido e
apanhou-o fascinada. O cenourinha olhava-a com olhos grandes e lábio inferior
relaxado. Nunca tinham visto uma garrafa tão bonita e decidiram deitar fora a
água para ver como ficaria cheia de líquidos de outra cor. Deram então conta
que não era água, mas sim um perfume e arrependeram-se de o ter desperdiçado,
mas nessa altura já os seus sapatos e meias estavam salpicados e o frasco não
tinha nem mais uma gota e eles divertiram-se a fazer misturas de água com
pétalas, batido de folhas e cal que saía do muro.
Nesse dia acabou o Verão e os sapatos foram arrumados. Muitas voltas o
mundo deu até que, num dia de Outono, a menina já mulher levou a sua filha à
escola das crianças agora chamadas “especiais”, ela continuava sem entender a
expressão porque achava que só por serem crianças todas eram especiais. A
menina levava nos pés os sapatos que a mãe da mulher arrumara há tanto tempo
atrás. Quando chegaram foram conhecer os ateliers criativos e a mãe da menina
viu numa prateleira da sala de trabalhos manuais um frasco em forma de rosa com
areia colorida lá dentro que reconheceu e lembrou-se do perfume que ainda
estava nos sapatos da menina e a transportava para momentos felizes. Olhou
melhor para o formador, era o cenourinha. Foi falar com ele e contou-lhe tanta
coisa, descrevendo com todos os pormenores a gravidez da filha e a origem da
deficiência dela. Ele não percebeu nada, mas mostrou-lhe um sorriso tão doce e
puro que lhe pareceu água e ela sentiu-se em casa. E começou a entender porque
é que a sua filha era especial.
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